Quando se fala em discos de uma vida, falam-se em todos
aqueles discos que nos moldaram a forma de como interpretar e sentir música na
sua verdadeira acepção. Julgo que nesse campo nenhum outro disco me influenciou
tanto como Dirty & Divine, longa-duração de uns senhores chamados Moonshake.
Estávamos na década de noventa, temporada que catapultou o
fenómeno grunge e o alternative rock como símbolos maiores
dessa geração cultural. Quase tudo o resto, assumindo o hiperbolismo mas perto
de se esquivar à verdade, passou ao lado. A internet não era tão de fácil
acesso como é hoje e os nomes que existiam num panorama mais underground acabavam por chegar a muito
pouca gente; é aqui que podemos introduzir os Moonshake, quinteto
britânico que se associa intimamente ao pioneirismo post-rock/shoegaze que despontou, exactamente, na década de noventa
por terras de Sua Majestade e que nunca conseguiu ter um reconhecimento à
medida do que merecia.
A sonoridade deste movimento prendia-se, e em muito, a uma
vasta quantidade de abstracionismo e a guitarras com técnicas muito similares,
porém instantaneamente reconhecíveis mesmo a ouvidos desprevenidos; neste mar
de ouro surgiram nomes como Disco Inferno, Bark Psychosis, Hood ou
Flying
Saucer Attack. Porém, imagine-se, a banda mais única do movimento (e
isto é apenas a minha opinião) foi, curiosamente, uma daquelas que menos
reconhecimento teve – falamos, claro, dos Moonshake.
Se para alguns o absctraccionismo era parte da génese
musical, para os Moonshake era o todo; é certo que a sua história prova-nos que
não e que houve momentos no seu historial sobretudo marcados pelas ideologias post-punk, como ficou registado no também
sublime Eva Luna, de 1992, o primeiro longa-duração da banda. Mas a
partir daí, houve uma exploração de novos caminhos sonoros e houve, acima de
tudo, uma divagação estética pelo seu próprio sim; os exageros na
experimentação sobressaíam e ainda hoje não tive sequer coragem de ouvir na
íntegra The Sound Your Eyes Can Follow, de 1994, o registo que se
adivinha como o mais experimental da banda. Pelo meio houve Big
Good Angel, 1993, e já aí se sentia a necessidade de a banda de David Callaham devanear por novos
horizontes. A maturação consolidou-se, efectivamente, quatro anos depois da
estreia nos lp’s, com Dirty
& Divine, lançado em 1996.
Dirty & Divine não é propriamente o disco mais apelativo de sempre, nem o
poderia ser; o seu conceito aquando da sua edificação jamais passaria por torná-lo
acessível a gregos e troianos – percebemos logo isso na primeira faixa,
intitulada Exotic Siren Song. É aí
que começamos a perceber que este disco demora a ser percebido e foge a rótulos;
se outrora era possível a comparação da arquitectura sonora dos Moonshake, à
la Eva
Luna, à dos Disco Inferno, à la Technicolour, por exemplo
(se bem que os samples de Ian Crause traçam uma barreira), aqui
essa ideia é brutalmente aniquilada. Trata-se de um disco mais envolvente,
ambiental e menos preocupado nas texturas noise,
se bem que elas por lá continuam a estar porém menos luzentes e a necessitar de
uma maior exumação para que consigam ser encontradas.
A imprevisibilidade da sonoridade patenteada em Dirty
& Divine é outro dos focos que mais o tornam único; se a percussão mantém
o estilo militar das rectóricas do post-punk
de Eva
Luna herdado de bandas como Joy Division ou Bahaus, tudo o resto é
completamente renovado e, além disso, inovado: existem por lá réstias de jazz, as guitarras emudecem-me se
outrora quando chamadas a intervir desempenhavam um estilo intimamente noise, agora ficam-se pelas ambiências e
passam completamente para segundo plano na génese sonora. E a vertente
electrónica acaba por ser aqui o principal catalisador para que o quinteto
esculpa peças musicais como Aqualisa,
Gambler’s Blues ou Nothing But Time. Pelo alinhamento do
registo existem também as memoráveis House
On Fire ou Hard Candy, mas é na
última faixa do Dirty & Divine que este disco ganha uma dimensão
platónica.
The Taboo é possivelmente uma das melhores
músicas de sempre que já ouvi (como, de resto, este álbum é); o perfil
idiossincrático e único de Dirty & Divine atinge aqui o seu
paroxismo – a hipnose que aqui nos é dissertada pela panóplia instrumental é
tremenda: um loop ininuterrupto ao
longo de todos os seus cinco minutos enquanto David Callaham despe-se na mestria lírica como até aqui não
tínhamos visto. E a verdade é que excessivamente fácil que a passagem “If I were to be really careful, / and take
pride in everything I do, / I would show you what ‘really’ is – / and I can’t,
‘cos it’s taboo. If I were to show you how I feel, / would you call me blue? /
If we could reach out and touch each other? / But we can’t, ‘cos it’s taboo.” se
vista e acomode nos nossos ouvidos por uma imensidade de tempo.
Em
suma, Dirty & Divine pode não ser, efectivamente, o melhor disco de sempre. Porém, é certamente
um dos mais únicos que existe. Esta sonoridade não se ouve em mais lado nenhum
a não ser aqui – e esqueçam tudo se querem procurar dentro dos próprios Moonshake um som com este; ele simplesmente não existe. Foi todo despejado aqui,
nesta quarentena de minutos, que, na verdade, tem a duração de uma vida. Vida
que se foi, ditada pelo tempo, esse que tanto suga, mas que não consegue sugar
aquilo que foi feito para ficar e jazer para toda a eternidade. E facto é que a
experimentação deste disco foi esboçada com esse fim, mas para uma certa quantidade
de pessoas. E nós agradecemos, e a eternidade também. Ambos ficámos bem
servidos.
Nota final: 10/10
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